CRÍTICAS

 Texto de João das Neves sobre Relampião      

Dois grupos jovens, dedicados ao teatro de rua, a Cia Paulicea e a Cia do Miolo se uniram para nos apresentar o espetáculo Relampião.
Relampião pretende reviver a lendária e emblemática figura do cangaceiro, associado aqui à luta cotidiana de todos aqueles que, a ferro e fogo,fugindo da seca, da semi escravidão imposta pelo latifúndio,que, os relega à condição de miserabilidade, buscam nas cidades grandes, melhores condições de vida.
Tudo isso soa a um discurso eternamente repetido. De boas intenções o inferno está cheio.
E, não bastariam elas para fazer de Relampião um espetáculo atraente, alegre e que pudesse a levar um  espectador tão fluido como o do teatro de rua a uma reflexão sobre sua própria realidade, por próxima que fosse.
Espetáculos de rua frequentemente iludem seus realizadores. Com um público quase sempre numeroso, afinal como bem diz o nome de um de nossos mais prestigiados grupos o espetáculo  “Ta na rua “. E, independente de sua qualidade, já se faz simpático por estar ali, gratuitamente, à nossa disposição. Quebrando nossa rotina, convidando-nos a uma solidariedade descomprometida etc.
Mas para que atinja seus objetivos nada disso é suficiente.
É freqüente, cada vez mais, a existência de espetáculos descuidados que pensam se justificar pelo simples fato de estarem na rua. De oferecerem gratuitamente os seus trabalhos. Julgam-se, por isso, populares, comparando-se, e não sem certo ar de superioridade, às manifestações espontâneas de nosso povo.  Esquecem-se do essencial. Que essa “espontaneidade” foi construída durante dezenas,centenas de anos de silenciosa decantação. De uma prática que se solidificou e sofisticou através de gerações,podendo ser comparada em qualidade e rigor artístico a qualquer manifestação artística da norma culta.



Assim, os reisados, os bumba meu boi, as escolas de samba, ou o congado mineiro,entre muitas outras, são grandes espetáculos épicos, de óperas populares. Espetáculos que, partindo de matriz religiosa como todo o bom teatro, se oferecem ao público da Polis com uma profundidade e excelência que pouquíssimos de nossos palcos logram atingir..
Toda essas considerações são fruto do impacto causado em nós pela apresentação de “Relampião”que assistimos na  7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas (Jardim Julieta – Zona Norte –São Paulo).

Ali estava um trabalho envolvente. Um trabalho capaz de fazer uma releitura criativa do significado das carrancas de proa do Rio S. Francisco, das folias e reisados, das esculturas em  madeira das Zefas,dos desenhos e pinturas das
Marias Lira,  das figuras em barro dos Vitalinos e Ulisses, dos cavalos marinhos, frevos , cavalhadas, das procissões de semana santa sobre os tapetes efêmeros
e coloridos de pos de serra nas ruas de Ouro Preto, da riqueza percussiva dos reinados negros dos congos etc. Não meras reproduções parafolclóricas; Mas a apropriação poética de nossas manifestações mais queridas; para um instante de afirmação de nossa identidade e reflexão sobre o Brasil que temos e o Brasil que queremos..
                                                      

João das Neves é Autor, tradutor, diretor, ator e iluminador teatral. Dirigiu o setor de Teatro de Rua, do Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes (UNE) até 1964, quando a entidade foi extinta pela ditadura. Ainda em 1964, foi um dos fundadores do histórico Grupo Opinião. Cursou Prática em Ciências Teatrais, na Alemanha, estagiando no setor de peças radiofônicas da Westdeutscher Rundfunk. Dirigiu óperas contemporâneas como “Continente Zero Hora”, de Rufo Herrera, e “Corpo Santo”, de Jorge Antunes, além de roteirizar e dirigir shows da MPB. Escreveu e dirigiu “O último carro”, ganhador de mais de 20 prêmios, entre eles o Golfinho de Ouro, Moliére e o prêmio da Bienal Internacional de São Paulo. É autor de “Mural mulher” e “Café da manhã”, entre outros. Foi indicado como melhor diretor ao Prêmio Shell de 2007 (“Besouro cordão de ouro”) e de 2009 (“A farsa da boa preguiça” ).

CANGACEIROS DO ASFALTO, 

RE-LAMPIÕES DA REVOLTA 

 

Por Kil Abreu no XX FENTEPP

 (FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO DE 

PRESIDENTE PRUDENTE)


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Não poderia ser outro senão o espírito de bando, de trupe, o que irmana a intervenção das Companhias do Miolo e Paulicéia, de São Paulo, nesta retomada poética do mito de Lampião. É excelente e muito sugestivo o nome do espetáculo, que remete tanto ao verbo relampejar quanto ao neologismo popular formado por derivação deste, relampiar. Ou, se quisermos, pelo substantivo Lampião (aquilo que ilumina, ou o próprio personagem histórico mesmo), a que se acrescenta o prefixo re, que indica repetição. Nesse sentido aí um relampião seria , portanto, uma volta a Lampião ou deLampião, bem como um estrondo luminoso, ou re-estrondo, um novo intenso e breve clarão, uma nova, momentânea luz.


Em qualquer caso, no espetáculo permanece o sentido das vozes que explodem em revolta, que não estão reunidas para contar uma vez mais a história do cangaço, mas para contrastar seu espírito com os deserdados de hoje, personificados no lúmpen urbano de errantes, desempregados, subempregados, artistas perdidos na cachaça ou na amargura alimentada pelas dobras difíceis da vida. Sob a informação extra-ordinária do próprio Virgulino Ferreira, revivido, ou de um assum preto que entoa o cancioneiro popular enquanto provoca corações e mentes, essa gente é instigada a fazer arma da amargura para, como aquele, ir à luta.

A dramaturgia de Solange Dias é uma beleza de escrita. Sem heroicizar e pondo a nu as contradições das personagens, alinhava aproximações e filosofa com precisão admirável sobre fatos e histórias de tempos diferentes, em síntese épico-poética que arrebata em um mesmo movimento o melhor da fala desobediente de antes ao estado das coisas no agora. Perfaz entre outras coisas, em crescente tomada de consciência, o encorajamento à assunção da responsabilidade sobre os rumos da própria história, no sentido dos percursos individuais tanto quanto do coletivo.


O fundamental na encenação de Alexandre Kavanji (direção geral) e Renata Lemes (direção de atores) é o trabalho dedicado para criar a indispensável ânima bem afirmada que a montagem pede sem perder de vista as nuances de pensamento. Em Prudente um detalhe técnico, a qualidade da amplificação das vozes aos microfones, tendeu a comprometer este equilíbrio, sobretudo para quem se manteve próximo às caixas de som. De um lugar mais afastado, porém, era possível ouvir melhor e com mais clareza o texto e observar o bom desenho na marcação, que segue em evoluções coreográficas e musicais estudadas e orgânicas ao fundamental do que está sendo explorado em cada passagem. Dinâmica bem amparada na direção musical de Charles Raszl.

Um elenco que vai para a cena de peito aberto, mas com noção clara sobre as medidas da atuação, faz toda a diferença. Sem nenhuma exceção são muito bem conduzidas, nos trabalhos físicos e vocais, as modulações no estado das personagens, que transitam do prostrado ao desejo inadiável de mudança, do lamento pessoal ao sangue nos olhos que, reconhecido como um sentimento não ilhado, aponta o princípio de convulsão social. É uma trupe valente formada por Aysha Nascimento, Antonia Mattos, Daniel Farias, Dudu Oliveira, Edi Cardoso, Francisco Gaspar e Harley Nóbrega, na companhia dos músicos Daniel Rodrigues e Glauber Coimbra. Ainda que haja desempenhos individuais com momentos aqui e ali mais brilhantes, todos têm passagens em que uma intervenção mais proeminente é pedida, e nenhum deixa de aproveitar a sua hora vital, o que garante à montagem um equilíbrio na sua função mais importante em se tratando da cena de rua. No conjunto, é o sentido bem afirmado da energia do bando o que garante a teatralidade .

Diante do rendimento estético mais que razoável, que compõe a bonita paisagem que o teatro de rua representa hoje em São Paulo, resta elogiar não apenas o acabamento formal do espetáculo, como também as suas motivações e escolhas. Pois o ponto de vista do qual a narrativa se conta é, antes de tudo, indicativo de uma posição, de uma afirmação sobre de que lado estão estes artistas, em uma época na qual nos querem fazer crer que só existe um lado e que por isso a expectativa sobre enfrentamentos e sobre mudanças profundas é coisa que ficou para trás. As companhias do Miolo e Paulicéia, com seu teatro desassossegado e em sintonia com certo sentimento “espírito de porco” que volta a contaminar a época, riscam o chão, relampiam a cena e nos lembram, com seu estrondoso chamado, que não é bem assim.


Fonte: Assessoria de Imprensa XX FENTEPP